quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Fronteiras

Uma carrinha de caixa aberta aproximava-se.
“Vem enganado como todos os outros.” pensou a mulher.
Mas com este foi um pouco diferente.
Com o cotovelo pousado na janela aberta, o homem, trintão, bigode aparado e ar rufia mas simpático, fitava-a. Depois, sorridente, cumprimentou-a:
- Ei giraça...
Agradada, respondeu:
- Bom dia.
Mas o sorriso dela desvaneceu-se ao ver, naquele instante, uma arma apontada a si.
Ele, sem deixar de sorrir, apenas disse:
- Passa para cá a massa.
Juntou o dinheiro pensativa. “Nunca ninguém me chamou giraça”.
- Só isto? Perguntou ele, descontente com a quantia recebida.
Ela encolheu os ombros.
- Mas posso levá-lo para longe daqui.
Foi a primeira e a última recordação. A seguir, fechou os olhos.


Uma portagem estabelece sempre uma fronteira. A maior parte dos que a atravessam passam por ela quase sem dar conta, viajantes puros. Alguns, poucos, detêm-se. Talvez estejam perdidos.


O rádio tocava baixo. Sentada, quieta, com o olhar perdido na estrada, Maria esperava. Apesar de contrariada, tinha que haver sempre alguém a tomar conta. A motoreta que se aproximava anunciava que chegara o momento em que alguém tinha que a render. Só os grilos cantavam na noite silenciosa. Maria levantou a bicicleta meia escondida pela vegetação e afastou-se pedalando lentamente. Contrariada, deu uma última mirada ao colega que, de costas para ela, se instalava no seu posto.


No início também não tinha sido fácil para ela. Custava-lhe que quase ninguém passasse por ali. Agora já não se importava. Até preferia assim. Adaptou o seu mundo aos campos que se estendiam em volta da sua cabina, numa calma só perturbada pelo voo dos pássaros e aos vários livros e revistas que lia. No que lia, o mundo dos outros parecia maravilhoso. Muito diferente do que chegava até ela. Mas com o tempo, convenceu-se que o melhor era deixar de perseguir o mundo dos outros e aceitar ser simplesmente feliz. Dos livros guardou só um. Na verdade pouco ou nada precisava dos outros. Abandonou a inquietação que estes lhe traziam e concentrou-se no seu posto. Nunca se desleixava. Sabia perfeitamente quando um carro se aproximava. Estava sempre pronta para os receber. A maior parte dos que apareciam viam-se que estavam perdidos e se calhavam falar com ela, não resistia. Começou a convidá-los para longe dali. Desapareciam por entre a vegetação e os barulhos tranquilos da natureza.
Depois, eles partiam e ela ficava a vê-los afastarem-se. Olhando a estrada como se esperasse que esta lhe trouxesse alguma coisa especial. Sabia que mais qualquer coisa lhe estava ainda prometida.


Com este último foi diferente. Nunca lhe tinham chamado giraça.
Parecia vir enganado como os outros. Depois, apontou-lhe uma arma e nunca mais foram os mesmos. Ela começou por levá-lo para longe dali. Mas ele não ficou. Contudo, foi o único que voltou. Trazia quase sempre presentes. Ela sabia que eram roubados, mas acabava rendida. Com ele, não precisava de mais ninguém. Ele velava o seu mundo enquanto ela dormia e assim era finalmente senhora de tudo. Maria deixou de levar os viajantes para longe dali e Mário não voltou a roubar mais nada depois de lhe ter roubado o coração.


Um dia vieram buscá-lo. Ele não estava, levaram-na a ela. Que também tinha culpa, calara a verdade, acusaram. Eu não sabia... ele disse que queria assentar...” balbuciou. Não lhe valeu de nada. Foi condenada e encarcerada. Aos poucos foi acabando. Descobriu uma verdade que agravou aquela que tinha aceitado. Por uns tempos vivera a ilusão da completude mas Mário era uma metade de um todo que não resistiu ao mundo dos outros. A um mundo que não deixou de chamar por ele. E Maria não tinha sido cruel o suficiente para o impedir de partir.
A ela não lhe servia uma felicidadezinha ajustada. Sabia que estava para sempre condenada a ser metade de um todo impossível. Por isso, não se conformou. E acabou com tudo.


“Deixei que quebrasse as fronteiras do meu mundo. Levaste-me para longe dele. Deixei soprar a paixão. Os pregos de véu que protegia a minha intimidade caíram como figos verdes da figueira sacudida por um vento forte. E fiquei exposta. A um mundo novo. Nosso, acreditei. Percebo agora que não. Ao teu, não quero estar presa. Perdi o caminho de volta. Este é o único que me resta.”


A cabina onde vivera era diferente daquela onde morrera. A primeira tinha um rádio, a segunda uma cama e crucifixo.
Três mulheres fardadas olhavam o corpo. Tão surpresas quanto a morte nos pode ser. Com os pulsos toscamente cortados, Maria repousava sobre o crucifixo. A quem tinha pedido todas as noites que a levasse para longe dali. As preces foram finalmente ouvidas e atravessou a fronteira que a delimitava como um viajante puro. Vulnerável. Perdida.
Em cima da cama, arrumada, deixou uma carta. Para Mário, dizia.
No rosto, a expressão serena de quem alcança a libertação.

(Abril/2009)

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