sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A cave

A minha cobardia perante a morte envergonha-me. A minha recusa em encará-la de frente torna-me menor. Por isso tranquei-a na cave e fujo dela desde então. Tento esquece-la, finjo que ela não existe, para poder aceitar os meus dias. Vivê-los depois dela tornou-se absurdo. Aceitar continuar a viver quando nos lançam a morte ao caminho, só pelo prazer de ver quem sobrevive a quem, é aceitar viver corrompido por um jogo que antes de começar sabemos quem são os derrotados: os vivos e os mortos. Mas dos mortos, dizem que vão para melhor.
A minha cave fica no Alto de S. João. Tem um número na porta e uma chave que, no entanto, não uso para a abrir.
Foi aqui que encerrei uma dor que não conhecia e no alto da minha pujante vida, me julguei até imune. Não estava preparada para a conhecer tão cedo. Sei agora que nem mais tarde, porque hoje continuo a não estar preparada para ela. Na necessidade de sobreviver à falta de coragem de pôr termo a uma vida que senti não merecer, ignoro que ela exista e é por isso que não tenho certeza nos meus dias. Porque é a morte que dá certeza à vida e eu escolhi ignorá-la. Não sei que mulher sou, que mãe, que guardiã do seu maior bem, que permitiu que ela, a morte, sorrateira e silenciosamente, lhe levasse uma filha e com ela o meu chão.
E como se caminha sem chão?
E sem dias?
E embora não os querendo, os meus dias teimavam em ser dias e, sem no entanto terem sido, só muitos anos depois percebi o que foram. Simplesmente dias. Cumprindo o tempo. O tempo que curaria a minha dor. “com o tempo passa”, diziam. Mas o tempo doía-me. Insultava-me com a passagem dos seus dias, das suas horas, que me recordavam as horas daquele dia. Até que depois, muito tempo depois, veio o dia que o tempo curou. Depois desse dia, os dias são de dor que ficou sem doer.
O que o tempo ainda não curou é o medo que tenho da morte. Eu e ela vivemos em luta constante na recusa da vida que eu insisto em guardar dentro de mim.
É por isso que não a visito com medo que ela aprenda a subir a escadas da cave para me visitar de novo.
É por isso que aquela porta continua a só ter um número por nome. Dar o nome da minha filha àquela porta, era dar à morte a vida que ainda hoje lhe continuo a negar.

(in "A Minha vida num Livro" de Pedro Sena-Lino)

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O Poço

Não gostava de tirar água do poço. Nunca vinha limpa.
As impurezas acumuladas no fundo turvavam-me o esforço de acreditar na pureza do beijo. Como a água do poço, o beijo era frio.
Também ele turvo, sem que no entanto lhe conhecesse a razão da sua incerteza, escorria sem que tivesse tempo de o sentir.
Seria limpo, puro e verdadeiro se não viesse do fundo?
Não sei. Mas sei que nunca vou saber a que sabe a água de um beijo que vem de cima, da água mais limpa, mas cristalina. Daquela água que se reflecte em nós e nos inunda de luz e certeza.
Não gosto de tirar água do poço.
A água do beijo vem sempre do fundo. E no fundo do poço o beijo é seco.
(Dez/2009)

23:10h

Aproximava-se a hora.
António regressava do parque de estacionamento. Eram oito da noite. Para trás deixava a cabina onde trabalhava. De passo largo, satisfeito, caminhava até casa. Quem olhasse para ele não adivinharia um homem sem sonhos. Mesmo depois de viver em paz.

Ainda era difícil chegar a casa. Abrir a porta e, a esperá-lo, a angústia do passado na expressão desolhada e o corpo rígido da mãe. “Estou cansada. Não durmo bem”, mascarava. Serenava apenas quando olhava o jantar quente em cima da mesa. Eram só os dois.

António vivia de rotinas. A repetição da vida numa segura monotonia que afiançadamente não lhe trazia surpresas nem traições. António era um homem cerrado. Só usava camisolas pretas. As únicas que o ocultavam até de si e, oculto, vivia o escuro da noite que à janela do seu quarto o distraía sem culpas. Desde os tempos de escola que lhe reclamavam a atenção. Foi naquela altura que a cabeça aprendeu a fugir. Assim, a vida não parecia tão difícil.

Agora, gostava que fosse possível aprender tudo de novo. Sonhar. Confiar. Mas os ânimos mais atrevidos eram condenados pela lembrança que o combóio das 23.10h trazia. A partida do pai. A nova vida. O alívio. A paz. Desejos tão impossíveis e subitamente todos realizados. Depois destes, não aspirava a mais nenhum.

Ao longe, o seu conhecido.
Sorria ao som do seu apito.

Da felicidade apenas guardava pequenos ecos dispersos na memória. Lembrava-se de ter sido uma criança feliz. Passeios de mãos dadas. Ele pequeno a olhar o pai enorme como os sonhos e o mundo de que lhe falava. Um conquistador que queria seguir. Recordava as tardes na casa grande com muitos quartos e cheia de senhoras só de robe. Apesar de estranhar vê-las com roupa de noite em pleno dia, tudo parecia normal quando o apaparicavam e contavam histórias de encantar. Até ao dia em que percebeu que aquelas histórias não encantavam a mãe. E aos poucos deixaram de ser felizes.
Com a barba veio a revelação.
A crueldade dos colegas de escola acabou-lhe com o mito. Às gargalhadas.

Não sabia o que fazer com o que tinha descoberto. Como é que se vive depois de saber que o pai nunca tinha sido aquele pai? Como é que se pode aceitar um novo pai? Não. Não havia novo nem velho pai. Havia só aquele desconhecido que ele odiava duplamente. Por tudo o que era e por tudo o que ele nunca tinha sido.

E ele, quem era? Ser filho de um desconhecido fazia dele um órfão. Era isso que ele era. A sua identidade extinguiu-se naquela verdade. Uma verdade que não consentia e que tinha que aceitar. Só tinha aquela vida. “Não vales nada. És igual a ela”, humilhava. À mãe, a repulsa apenas lhe valia ameaças que lhe abriam a porta da rua. Mas o rapaz fica, rematava. Sem ti, talvez se faça homem. Foi então que se vestiu de pesar. Pelo medo que o escravizava mudo e quedo.
Até ao dia que se achou. E nesse dia foi capaz de acabar com o asco que o corrompia. Uma noite foi ao seu encontro. Tinha os punhos cerrados, tão cerrados que lhe doíam. Receava perder toda a coragem que reunira. A veste mais escura que a noite, apanhou o pai de surpresa. Olhou-o nos olhos e, sem remorsos, desembuchou anos de nojo. Desaparece, ou mato-te!, foram as últimas palavras que lhe disse.

Nessa noite, voltou à janela do quarto de peito aliviado. O pai tinha razão. Ele e a mãe eram iguais. Aquela noite provou-lhe que os mortais também ressuscitam. Plenos. O desconhecido não voltou para casa e as noites ganharam cheiro a lavado. Foi nesta altura que deixou de desejar. Tudo o que queria, alcançara. À mãe agradecia nunca ter desistido. Por isso, também ele não fraquejara.

Ao fundo, o apito do comboio das 23.10h. A constância a cumprir-se num cumprimento de amigos.

Conciliado, agradecia-lhe a ajuda. A sua luz, como que uma anunciação divina, mostrou-lhe o fazer. “Combóio faz mais uma vítima”, diziam os jornais do dia seguinte. Os braços endureciam. Ainda recordavam a força com que o empurrara. Impávido, ainda via o seu desaparecer trucidado. Impiedoso com as horas.

Fronteiras

Uma carrinha de caixa aberta aproximava-se.
“Vem enganado como todos os outros.” pensou a mulher.
Mas com este foi um pouco diferente.
Com o cotovelo pousado na janela aberta, o homem, trintão, bigode aparado e ar rufia mas simpático, fitava-a. Depois, sorridente, cumprimentou-a:
- Ei giraça...
Agradada, respondeu:
- Bom dia.
Mas o sorriso dela desvaneceu-se ao ver, naquele instante, uma arma apontada a si.
Ele, sem deixar de sorrir, apenas disse:
- Passa para cá a massa.
Juntou o dinheiro pensativa. “Nunca ninguém me chamou giraça”.
- Só isto? Perguntou ele, descontente com a quantia recebida.
Ela encolheu os ombros.
- Mas posso levá-lo para longe daqui.
Foi a primeira e a última recordação. A seguir, fechou os olhos.


Uma portagem estabelece sempre uma fronteira. A maior parte dos que a atravessam passam por ela quase sem dar conta, viajantes puros. Alguns, poucos, detêm-se. Talvez estejam perdidos.


O rádio tocava baixo. Sentada, quieta, com o olhar perdido na estrada, Maria esperava. Apesar de contrariada, tinha que haver sempre alguém a tomar conta. A motoreta que se aproximava anunciava que chegara o momento em que alguém tinha que a render. Só os grilos cantavam na noite silenciosa. Maria levantou a bicicleta meia escondida pela vegetação e afastou-se pedalando lentamente. Contrariada, deu uma última mirada ao colega que, de costas para ela, se instalava no seu posto.


No início também não tinha sido fácil para ela. Custava-lhe que quase ninguém passasse por ali. Agora já não se importava. Até preferia assim. Adaptou o seu mundo aos campos que se estendiam em volta da sua cabina, numa calma só perturbada pelo voo dos pássaros e aos vários livros e revistas que lia. No que lia, o mundo dos outros parecia maravilhoso. Muito diferente do que chegava até ela. Mas com o tempo, convenceu-se que o melhor era deixar de perseguir o mundo dos outros e aceitar ser simplesmente feliz. Dos livros guardou só um. Na verdade pouco ou nada precisava dos outros. Abandonou a inquietação que estes lhe traziam e concentrou-se no seu posto. Nunca se desleixava. Sabia perfeitamente quando um carro se aproximava. Estava sempre pronta para os receber. A maior parte dos que apareciam viam-se que estavam perdidos e se calhavam falar com ela, não resistia. Começou a convidá-los para longe dali. Desapareciam por entre a vegetação e os barulhos tranquilos da natureza.
Depois, eles partiam e ela ficava a vê-los afastarem-se. Olhando a estrada como se esperasse que esta lhe trouxesse alguma coisa especial. Sabia que mais qualquer coisa lhe estava ainda prometida.


Com este último foi diferente. Nunca lhe tinham chamado giraça.
Parecia vir enganado como os outros. Depois, apontou-lhe uma arma e nunca mais foram os mesmos. Ela começou por levá-lo para longe dali. Mas ele não ficou. Contudo, foi o único que voltou. Trazia quase sempre presentes. Ela sabia que eram roubados, mas acabava rendida. Com ele, não precisava de mais ninguém. Ele velava o seu mundo enquanto ela dormia e assim era finalmente senhora de tudo. Maria deixou de levar os viajantes para longe dali e Mário não voltou a roubar mais nada depois de lhe ter roubado o coração.


Um dia vieram buscá-lo. Ele não estava, levaram-na a ela. Que também tinha culpa, calara a verdade, acusaram. Eu não sabia... ele disse que queria assentar...” balbuciou. Não lhe valeu de nada. Foi condenada e encarcerada. Aos poucos foi acabando. Descobriu uma verdade que agravou aquela que tinha aceitado. Por uns tempos vivera a ilusão da completude mas Mário era uma metade de um todo que não resistiu ao mundo dos outros. A um mundo que não deixou de chamar por ele. E Maria não tinha sido cruel o suficiente para o impedir de partir.
A ela não lhe servia uma felicidadezinha ajustada. Sabia que estava para sempre condenada a ser metade de um todo impossível. Por isso, não se conformou. E acabou com tudo.


“Deixei que quebrasse as fronteiras do meu mundo. Levaste-me para longe dele. Deixei soprar a paixão. Os pregos de véu que protegia a minha intimidade caíram como figos verdes da figueira sacudida por um vento forte. E fiquei exposta. A um mundo novo. Nosso, acreditei. Percebo agora que não. Ao teu, não quero estar presa. Perdi o caminho de volta. Este é o único que me resta.”


A cabina onde vivera era diferente daquela onde morrera. A primeira tinha um rádio, a segunda uma cama e crucifixo.
Três mulheres fardadas olhavam o corpo. Tão surpresas quanto a morte nos pode ser. Com os pulsos toscamente cortados, Maria repousava sobre o crucifixo. A quem tinha pedido todas as noites que a levasse para longe dali. As preces foram finalmente ouvidas e atravessou a fronteira que a delimitava como um viajante puro. Vulnerável. Perdida.
Em cima da cama, arrumada, deixou uma carta. Para Mário, dizia.
No rosto, a expressão serena de quem alcança a libertação.

(Abril/2009)

Degraus

Os nervos varrem-me a memória, tiram-me as palavras da boca, o discurso ensaiado esvai-se em mágoas e culpas, subo as escadas e em cada degrau, que subo lento, tento memorizar as frases que preparei

não me fizeste feliz
detesto a maneira como comes
estou há demasiados anos presa a ti como um cão, obediente e fiel
quero ser livre, quero outros homens, quero dormir até tarde e deixar de vestir
roupas como se tivesse 50 anos

mais um degrau e abençoo a minha vida falhada, o meu ventre estragado, não me deu filhos, eu também não os queria, não quero réplicas de ti, és igual à tua mãe e eu odeio a tua mãe, falhei como cristã só tenho ódio dentro de mim, aproximo-me do patamar e da luz que diz que me esperas no quarto que cheira ao jornal que lês, nunca consegui que perdesses esse hábito

sei que me esperas na mesma posição de sempre, sentado, recostado nas tuas duas almofadas, de rosto rígido e óculos na ponta do nariz, sempre demasiado composto

deito-me suavemente como suavemente se deitam os cães aos pés dos donos, a cama quente chama-me pela infância e pelo conforto de ter alguém que olhe por nós, arrumas o jornal e antes de apagar a luz dás-me um beijo, um beijo igual a todas as noites que me recompensa como uma festa no lombo

abro a boca para finalmente libertar a angústia que me acorrenta. olhas-me sério enquanto te digo firme e convicta: não sei viver sem ti.

O Coração da Casa

A vida daquela casa nascia na cozinha.
Era ali que a encontrava todas as manhãs. A vida e a Mami.
Ao acordar, percorria, quase sonâmbula, o silêncio da casa conduzida apenas pelo bater do seu coração que ecoava só para me guiar. Pulsava a cozinha e pulsava ela, cheia de vida que despertava a vida ainda adormecida em mim.
Sem palavras que desflorassem o silêncio, a sua figura esbelta, esguia, de cabelo penteado num carrapito elegante, recebia-me apenas com olhos e braços que me levavam para dentro dela. E era de dentro dela que encontrava a vida para aquele dia. Uma vida que se renovava todos os dias, nas suas manhãs, fossem de chuva ou sol. Pouco importava como acordava o dia pois não eram eles que faziam a vida. Era ela. Na segurança do seu abraço, no aconchego do seu colo, nos seus rituais que também já eram os meus.
Sentada no banco que ficava entre o fogão e a bancada da cozinha, aguardava o pequeno almoço ainda mal articulando o pensamento e as palavras, sofrendo das angústias com que acordava todos os dias. Não lhes sabia a origem mas eram tão reais em mim como os meus braços ou as minhas pernas. As minhas angústias levantavam-se e deitavam-se comigo. Mas havia um momento, um único momento no dia, que nada, nem angústias, existiam. E o momento era aquele.
Dos rituais, o ritual supremo: no meio dos barulhos da cozinha, bicos de fogão desafinados, panelas de pressão a chiar, esquentador a ronronar, todos com absoluta indiferença pela nossa presença, a vida suspendia-se por instantes. Naquele instante, éramos só nós as duas. Eu, levantava-me para ela se sentar no banco entre o fogão e a bancada da cozinha. Um cantinho que não era nem grande nem pequeno, apenas do nosso tamanho, o suficiente para ficarmos sós e em silêncio no meio do burburinho matinal que acordava a casa. Mas ao levantar-me não lhe dava o lugar. Era ela que me dava lugar. O lugar, o único, em si. Suavemente, puxava-me para o seu colo e eu, entre o calor do seu corpo e o frio da pedra da bancada de mármore, comia as melhores torradas da minha vida. Ela, naquele que era o seu maior prazer de todos dos dias, via-me comer. Olhava-me em silêncio, apenas sorrindo sempre que lhe procurava os olhos e eu, olhada em silêncio, agradecia em cada mordida, aquele olhar que dava vida ao meu coração e me apaziguava as angústias, que apesar de saber que no dia seguinte estariam de volta, naquele instante tudo era perfeito, bom e belo.
Com a adolescência, saí daquela casa. Depois de mim houve outras crianças naquela casa, no lugar que foi meu. Mas nunca o tiveram verdadeiramente. Guardo a mágoa de, ingratamente, ter passado muito tempo sem a visitar. O remorso crescia quando, em cada visita, no lugar da esperada e justa reclamação, estava o sorriso, os olhos e os braços de sempre. Em cada despedida, deixava-me no ouvido “és o meu amor”.
Mas era precisamente desse amor que fugia.
Depois do dela não tive outro que me dissesse que eu era capaz. Capaz de tudo, dizia-me ela. E como iria eu viver sem aquele amor? Como ia eu sobreviver às minhas angústias, que traiçoeiramente cresciam quando viram que perdia protecção? E como dizer-lhe que não a visitava para aprender a viver sem o seu amor por não ter quem lhe desse seguimento, colo e torradas? Guardo e guardarei a mágoa de não a ter visitado todos os dias da sua vida, depois de ela ter deixado de fazer parte da minha. De não ter ouvido todos os dias “és o meu amor” e de ter faltado sempre à promessa de voltar na semana seguinte. A última vez que voltei foi para a ver morta. Branca de luz, esbelta, esguia e de cabelo elegantemente desmanchado. Chorei durante muito tempo uma culpa sem fim. Uma culpa que passou também ela a fazer parte das minhas angústias. Até à noite em que me apareceu em sonho. Só o rosto de traços finos, levemente rosado e o cabelo penteado num carrapito elegante. Desde então, as suas aparições, raras e fugazes, parecem escolher criteriosamente o momento de me visitar. Sem palavras e apenas por breves instantes. O suficiente para me deixar o sorriso de sempre que me traz à vida a vida que às vezes foge de dentro de mim.
Hoje, a minha cozinha é o coração da minha casa. É aqui que tudo acontece. Desde as refeições em família, as ajudas aos trabalhos de casa, palestras educativas ou simples brincadeiras e construções de Lego. A minha cozinha moderna não tem chaminé. Mas tem um cantinho com um banco onde os meus filhos me encontram quando querem colo.
(Set/2009)