Os nervos varrem-me a memória, tiram-me as palavras da boca, o discurso ensaiado esvai-se em mágoas e culpas, subo as escadas e em cada degrau, que subo lento, tento memorizar as frases que preparei
não me fizeste feliz
detesto a maneira como comes
estou há demasiados anos presa a ti como um cão, obediente e fiel
quero ser livre, quero outros homens, quero dormir até tarde e deixar de vestir
roupas como se tivesse 50 anos
mais um degrau e abençoo a minha vida falhada, o meu ventre estragado, não me deu filhos, eu também não os queria, não quero réplicas de ti, és igual à tua mãe e eu odeio a tua mãe, falhei como cristã só tenho ódio dentro de mim, aproximo-me do patamar e da luz que diz que me esperas no quarto que cheira ao jornal que lês, nunca consegui que perdesses esse hábito
sei que me esperas na mesma posição de sempre, sentado, recostado nas tuas duas almofadas, de rosto rígido e óculos na ponta do nariz, sempre demasiado composto
deito-me suavemente como suavemente se deitam os cães aos pés dos donos, a cama quente chama-me pela infância e pelo conforto de ter alguém que olhe por nós, arrumas o jornal e antes de apagar a luz dás-me um beijo, um beijo igual a todas as noites que me recompensa como uma festa no lombo
abro a boca para finalmente libertar a angústia que me acorrenta. olhas-me sério enquanto te digo firme e convicta: não sei viver sem ti.
"O círculo, a pedra do mundo, o gozo do claro despertar, a lenta existência do igual, o que está sempre velando adormecido, eterno nas suas veias de silêncio."
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Degraus
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Da Pena
O Coração da Casa
A vida daquela casa nascia na cozinha.
Era ali que a encontrava todas as manhãs. A vida e a Mami.
Ao acordar, percorria, quase sonâmbula, o silêncio da casa conduzida apenas pelo bater do seu coração que ecoava só para me guiar. Pulsava a cozinha e pulsava ela, cheia de vida que despertava a vida ainda adormecida em mim.
Sem palavras que desflorassem o silêncio, a sua figura esbelta, esguia, de cabelo penteado num carrapito elegante, recebia-me apenas com olhos e braços que me levavam para dentro dela. E era de dentro dela que encontrava a vida para aquele dia. Uma vida que se renovava todos os dias, nas suas manhãs, fossem de chuva ou sol. Pouco importava como acordava o dia pois não eram eles que faziam a vida. Era ela. Na segurança do seu abraço, no aconchego do seu colo, nos seus rituais que também já eram os meus.
Sentada no banco que ficava entre o fogão e a bancada da cozinha, aguardava o pequeno almoço ainda mal articulando o pensamento e as palavras, sofrendo das angústias com que acordava todos os dias. Não lhes sabia a origem mas eram tão reais em mim como os meus braços ou as minhas pernas. As minhas angústias levantavam-se e deitavam-se comigo. Mas havia um momento, um único momento no dia, que nada, nem angústias, existiam. E o momento era aquele.
Dos rituais, o ritual supremo: no meio dos barulhos da cozinha, bicos de fogão desafinados, panelas de pressão a chiar, esquentador a ronronar, todos com absoluta indiferença pela nossa presença, a vida suspendia-se por instantes. Naquele instante, éramos só nós as duas. Eu, levantava-me para ela se sentar no banco entre o fogão e a bancada da cozinha. Um cantinho que não era nem grande nem pequeno, apenas do nosso tamanho, o suficiente para ficarmos sós e em silêncio no meio do burburinho matinal que acordava a casa. Mas ao levantar-me não lhe dava o lugar. Era ela que me dava lugar. O lugar, o único, em si. Suavemente, puxava-me para o seu colo e eu, entre o calor do seu corpo e o frio da pedra da bancada de mármore, comia as melhores torradas da minha vida. Ela, naquele que era o seu maior prazer de todos dos dias, via-me comer. Olhava-me em silêncio, apenas sorrindo sempre que lhe procurava os olhos e eu, olhada em silêncio, agradecia em cada mordida, aquele olhar que dava vida ao meu coração e me apaziguava as angústias, que apesar de saber que no dia seguinte estariam de volta, naquele instante tudo era perfeito, bom e belo.
Com a adolescência, saí daquela casa. Depois de mim houve outras crianças naquela casa, no lugar que foi meu. Mas nunca o tiveram verdadeiramente. Guardo a mágoa de, ingratamente, ter passado muito tempo sem a visitar. O remorso crescia quando, em cada visita, no lugar da esperada e justa reclamação, estava o sorriso, os olhos e os braços de sempre. Em cada despedida, deixava-me no ouvido “és o meu amor”.
Mas era precisamente desse amor que fugia.
Depois do dela não tive outro que me dissesse que eu era capaz. Capaz de tudo, dizia-me ela. E como iria eu viver sem aquele amor? Como ia eu sobreviver às minhas angústias, que traiçoeiramente cresciam quando viram que perdia protecção? E como dizer-lhe que não a visitava para aprender a viver sem o seu amor por não ter quem lhe desse seguimento, colo e torradas? Guardo e guardarei a mágoa de não a ter visitado todos os dias da sua vida, depois de ela ter deixado de fazer parte da minha. De não ter ouvido todos os dias “és o meu amor” e de ter faltado sempre à promessa de voltar na semana seguinte. A última vez que voltei foi para a ver morta. Branca de luz, esbelta, esguia e de cabelo elegantemente desmanchado. Chorei durante muito tempo uma culpa sem fim. Uma culpa que passou também ela a fazer parte das minhas angústias. Até à noite em que me apareceu em sonho. Só o rosto de traços finos, levemente rosado e o cabelo penteado num carrapito elegante. Desde então, as suas aparições, raras e fugazes, parecem escolher criteriosamente o momento de me visitar. Sem palavras e apenas por breves instantes. O suficiente para me deixar o sorriso de sempre que me traz à vida a vida que às vezes foge de dentro de mim.
Hoje, a minha cozinha é o coração da minha casa. É aqui que tudo acontece. Desde as refeições em família, as ajudas aos trabalhos de casa, palestras educativas ou simples brincadeiras e construções de Lego. A minha cozinha moderna não tem chaminé. Mas tem um cantinho com um banco onde os meus filhos me encontram quando querem colo.
(Set/2009)
Era ali que a encontrava todas as manhãs. A vida e a Mami.
Ao acordar, percorria, quase sonâmbula, o silêncio da casa conduzida apenas pelo bater do seu coração que ecoava só para me guiar. Pulsava a cozinha e pulsava ela, cheia de vida que despertava a vida ainda adormecida em mim.
Sem palavras que desflorassem o silêncio, a sua figura esbelta, esguia, de cabelo penteado num carrapito elegante, recebia-me apenas com olhos e braços que me levavam para dentro dela. E era de dentro dela que encontrava a vida para aquele dia. Uma vida que se renovava todos os dias, nas suas manhãs, fossem de chuva ou sol. Pouco importava como acordava o dia pois não eram eles que faziam a vida. Era ela. Na segurança do seu abraço, no aconchego do seu colo, nos seus rituais que também já eram os meus.
Sentada no banco que ficava entre o fogão e a bancada da cozinha, aguardava o pequeno almoço ainda mal articulando o pensamento e as palavras, sofrendo das angústias com que acordava todos os dias. Não lhes sabia a origem mas eram tão reais em mim como os meus braços ou as minhas pernas. As minhas angústias levantavam-se e deitavam-se comigo. Mas havia um momento, um único momento no dia, que nada, nem angústias, existiam. E o momento era aquele.
Dos rituais, o ritual supremo: no meio dos barulhos da cozinha, bicos de fogão desafinados, panelas de pressão a chiar, esquentador a ronronar, todos com absoluta indiferença pela nossa presença, a vida suspendia-se por instantes. Naquele instante, éramos só nós as duas. Eu, levantava-me para ela se sentar no banco entre o fogão e a bancada da cozinha. Um cantinho que não era nem grande nem pequeno, apenas do nosso tamanho, o suficiente para ficarmos sós e em silêncio no meio do burburinho matinal que acordava a casa. Mas ao levantar-me não lhe dava o lugar. Era ela que me dava lugar. O lugar, o único, em si. Suavemente, puxava-me para o seu colo e eu, entre o calor do seu corpo e o frio da pedra da bancada de mármore, comia as melhores torradas da minha vida. Ela, naquele que era o seu maior prazer de todos dos dias, via-me comer. Olhava-me em silêncio, apenas sorrindo sempre que lhe procurava os olhos e eu, olhada em silêncio, agradecia em cada mordida, aquele olhar que dava vida ao meu coração e me apaziguava as angústias, que apesar de saber que no dia seguinte estariam de volta, naquele instante tudo era perfeito, bom e belo.
Com a adolescência, saí daquela casa. Depois de mim houve outras crianças naquela casa, no lugar que foi meu. Mas nunca o tiveram verdadeiramente. Guardo a mágoa de, ingratamente, ter passado muito tempo sem a visitar. O remorso crescia quando, em cada visita, no lugar da esperada e justa reclamação, estava o sorriso, os olhos e os braços de sempre. Em cada despedida, deixava-me no ouvido “és o meu amor”.
Mas era precisamente desse amor que fugia.
Depois do dela não tive outro que me dissesse que eu era capaz. Capaz de tudo, dizia-me ela. E como iria eu viver sem aquele amor? Como ia eu sobreviver às minhas angústias, que traiçoeiramente cresciam quando viram que perdia protecção? E como dizer-lhe que não a visitava para aprender a viver sem o seu amor por não ter quem lhe desse seguimento, colo e torradas? Guardo e guardarei a mágoa de não a ter visitado todos os dias da sua vida, depois de ela ter deixado de fazer parte da minha. De não ter ouvido todos os dias “és o meu amor” e de ter faltado sempre à promessa de voltar na semana seguinte. A última vez que voltei foi para a ver morta. Branca de luz, esbelta, esguia e de cabelo elegantemente desmanchado. Chorei durante muito tempo uma culpa sem fim. Uma culpa que passou também ela a fazer parte das minhas angústias. Até à noite em que me apareceu em sonho. Só o rosto de traços finos, levemente rosado e o cabelo penteado num carrapito elegante. Desde então, as suas aparições, raras e fugazes, parecem escolher criteriosamente o momento de me visitar. Sem palavras e apenas por breves instantes. O suficiente para me deixar o sorriso de sempre que me traz à vida a vida que às vezes foge de dentro de mim.
Hoje, a minha cozinha é o coração da minha casa. É aqui que tudo acontece. Desde as refeições em família, as ajudas aos trabalhos de casa, palestras educativas ou simples brincadeiras e construções de Lego. A minha cozinha moderna não tem chaminé. Mas tem um cantinho com um banco onde os meus filhos me encontram quando querem colo.
(Set/2009)
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