tag:blogger.com,1999:blog-1942883784248681362024-03-13T14:29:34.227+00:00CORDÕES UMBILICAIS"O círculo, a pedra do mundo,
o gozo do claro despertar,
a lenta existência do igual,
o que está sempre velando adormecido,
eterno nas suas veias de silêncio."Unknownnoreply@blogger.comBlogger9125tag:blogger.com,1999:blog-194288378424868136.post-71027221536088280052011-01-26T17:00:00.000+00:002011-01-26T17:00:11.595+00:00Se eu quisesse enlouquecia.<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Se eu quisesse enlouquecia.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Fugia dos que caminham campos alagados. Vidas de águas paradas. Vidas que se atolam no chão lamacento dos seus dias. Como se o seu destino fosse enterrar os pés num lodo que os adoece de apatia. Deslizam na quietude dos pequenos vícios e chamam-lhe felicidade. Caminhar como o vizinho é a única certeza da estagnação do pensamento e da qual fujo antes que a morte se antecipe.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Se eu quisesse enlouquecia.</span></div><div class="MsoBodyText2" style="margin: 0cm 0cm 0pt;"><span lang="PT"><span style="color: green; font-family: Tahoma;">Despia-me deste corpo e caminhava sobre a mediocridade com a serenidade de quem atravessa campos de trigo. O trigo de verão que me acaricia a cara como o sol que não há. No céu inteiro de dúvidas, doira-me os olhos e faz-me acreditar que os dias se merecem.</span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Um sol que aquece o meu céu interior. Um céu que nasce todos os dias desde o dia em que o céu cá fora se fechou. A água, mesmo fria e lamacenta ainda me lembra os dias que dela nasci antes de ser pantanosa. Quando era apenas limpa e quente. E caminhado o meu campo alagado toco com a ponta dos dedos nas espigas de esperança e volto a acreditar que os dias me merecem.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Se eu quisesse enlouquecia.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Deixava de flutuar nos medos que me escravizam as noites e acordava em manhãs novas de fé que emergem em cada dia alagado.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">A água, mesmo escura, é vida. Na água tudo é leve. Tudo parece o que não é. A opacidade da sua cor distorce a dor de não sermos. Apenas perecemos, todos dos dias, mais um dia. Com ela, escorro pelos dias, lavo a tristeza dos outros que é a minha mas que em mim não aceito.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Se eu quisesse enlouquecia. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Parava de me caminhar. De rasgar com a força das pernas a monotonia dos dias alagados. De contrair a carne que tende a cair de melancolia, agitar o sangue com a poesia dos pequenos gestos e deter o coração de bater seguro enquanto resisto à inércia das horas e à coerência da felicidade.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Renunciava a ser disforme. Seria apenas uniforme e conforme. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Desistia de escolher o curso da minha água. De olhar para traz e ver o meu rasto ainda marcado no sentido da vida.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Se que quisesse enlouquecia.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="color: green; font-family: Tahoma;">Se não fosse já louca.</span></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-194288378424868136.post-28897723778238134772010-12-20T12:03:00.000+00:002010-12-20T12:03:33.625+00:00A Montanha<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Tahoma;">Subir uma montanha é uma prova de esforço. Um sacrifício.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Tahoma;">Silvestre subia a montanha todos os dias. Sempre que se deitava ao caminho, havia nele um entusiasmo inicial, quase infantil e ingénuo, que o fazia esquecer a dificuldade que era subir a montanha. Como a dor nas pernas. Já a montanha ia a meio quando por elas dava.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Tahoma;">As pernas pesando, os tornozelos estalando e as plantas dos pés sentindo as pedras a enterrarem-se-lhe na carne como o sacrifício se enterra na fé. O coração batia cada vez mais devagar. A parar lentamente por dentro. O sangue sentia-o já pastoso. Como que a vida a arrastar-se numa última agonia. Só dava pela dificuldade quando o corpo se preparava para morrer.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Tahoma;">Mas da fé, assim como da montanha, Silvestre não desistia.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Tahoma;">Desistir da montanha era desistir da vida. E Silvestre só sabia ter aquela vida de moço de estrebaria que ficava para além da montanha.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Tahoma;">À sua semelhança, o chão da vida não era fácil, liso, sem pedras no caminho. Para lá dela, como ela, o seu dia era duro e espinhoso.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Tahoma;">Era aquela montanha que o dava à luz todos os dias. Com o ar frio crescia febril o desejo de vencer. Tão puro de vontade que lhe custava a entrar no peito. Igualzinho ao dia em que nasceu da carne. A mesma dor quando o ar lhe entrou no peito e o fez gritar a plenos pulmões. Já naquela altura a todos surpreendeu a força da sua afirmação. Mediram o seu calibre pelo alcance do seu grito. Ele só nascera com meio metro. Mas meio metro de gente é muito promissor, augurou o pai.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Tahoma;">A montanha era uma prova de esforço que ele vencia todos os dias. Com o suor de quem não desiste. Com o fôlego de quem resiste. Com a determinação de quem subsiste. A dificuldade ultrapassava com a mesma força que precisou para nascer. Com a força com que empurrou a barriga de sua mãe, empurrava o chão da vida. Os pés vincados nas costelas, a cabeça a furar um caminho igualmente árduo e doloroso, o coração a explodir no peito e o vento da fé a leva-lo para cima. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Tahoma;">Era no cume que o sacrifício da montanha se apaziguava num suspiro que tudo levava de dentro de si.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Tahoma;">Só o frio da montanha permanecia. Todos os dias. Para o acompanhar. </span></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-194288378424868136.post-12503509457336877342010-12-16T17:14:00.001+00:002010-12-16T17:29:51.441+00:00Desmembramentos<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Tirou o cutelo.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">As bancadas de pedra estavam escrupulosamente limpas. Ao contrário de qualquer cozinha onde se acumulam torradeiras, correio e espremedores de fruta nas bancadas, estas eram só limpas e frias. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Maria estava de olhos fixos no frango que acabara de colocar em cima da tábua. Abriu a gaveta dos talheres onde guardava o conjunto de facas de cozinha. Estavam arrumadas por tamanhos. Um tabuleiro de instrumentos cirúrgicos não estaria melhor arrumado.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Olhou novamente o frango. As pernas escachadas e as asas abertas faziam-no parecer o bebé. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;"><span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 1;"> </span><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Se ao menos ele se calasse</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Tirou a faca de "chef". </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Uma lâmina que serve para quase tudo, longa de 30 cm e larga, ponta ligeiramente curva.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Com a mão esquerda agarrou na perna esquerda do frango. Depois, encostou a faca junto à coxa do frango e pressionou suavemente sentindo-a enterrar-se na carne tenra, lenta mas firme, enquanto a coxa se separava da carcaça. Numa só peça. Coxa e sobrecoxa. Depois, separou-as cortando-as pela articulação. Cortar pela articulação era fácil. Não tinha que lutar contra os ossos que requerem força. E Maria não queria lutar mais. Lutava todos os dias para se levantar. Lutava contra as dores dos seios quando dava de mamar. Lutava contra o sono. Contra o cansaço. Contra o corpo que teimava em esquece-la. Como todos. Porque as articulações por onde todos se ligavam, começavam a inchar de silêncio. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Para não lutar com os ossos, cortava pelas articulações. Para as encontrar, bastava-lhe mover a peça de carne e cortar na direcção indicada pelo movimento. Fácil. Fez o mesmo com a coxa direita. E com as asas que pareciam coxas mais pequenas. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Seguia-se o peito. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Pousou a faca. Agora o frango parecia um bebé sem pernas nem braços. Limpou o suor da testa e puxou o cabelo ainda despenteado para trás. Respirou fundo. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;"><span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 1;"> </span><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Se ao menos pudesse dormir</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Pegou no cutelo. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Com um gesto rápido e firme enterrou-o com raiva ao centro da carcaça separando o peito do frango em dois. <span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 2;"> </span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">O frango cortado ao meio, agora ensanguentado, evidenciava as costelas e miudezas. E fragilidade. Quão frágil era agora o frango, esquartejado. Mas o frango despedaçado não se calava. Porque a fragilidade faz barulho. Grita queixas e pedidos de ajuda inteligíveis. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;"> </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;"><span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Se ao menos percebesse o que ele quer</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Mas não era ela que não percebia. Eram os outros que deixaram de a perceber. Porque ela já não era ela. Já não era um <b>Eu</b>. Despertou numa vida em que os dias eram feitos de enganos. Foi assim que percebeu que o seu <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">Eu</i></b> já não era o mesmo. Viu-se sozinha numa vida na qual não se reconhecia. Era só ela. Sem o seu <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">Eu</i></b>. Numa nova vida. Outro <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">Eu</i></b>, desconhecido dela, ocupou o lugar do seu <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">Eu</i></b> perdido, porque este já não servia à vida que levava. Agora não era ela que vivia a vida. Era a vida que a vivia a ela. Uma explosiva imposição da qual o futuro não a deixava fugir. Todos os dias. Perguntava-se se haveriam dias diferente. A sua tristeza já não lhe permitia sequer acreditar que haveriam outros dias. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">À medida que avançava pela casa, uma voz ralhava-lhe ameaçando-a de castigos. E ela, dormente, cumpria o seu destino. Prepararam-na para ser uma pessoa que ela não conhecia. “Senhora de....”. A passagem da sua identidade para o nome de outrem, esvaziava-a. Sentia saudades de si. Daquela que fora até casar. Como se não bastasse, acompanhada pela obrigação de cumprir certas instruções “a partir de agora...” que definem um modo de agir adulto e responsável. Uma forma de vida conjugada no imperativo “tens que...”, cheia de avisos “não te esqueças de...”, que a alertavam para uma existência cheia de perigos e armadilhas. Apesar da visão do que a esperava, não tinha como fugir. E agora tinha o bebé. É a vida, diziam-lhe. Ainda se sentia pior. Pelo que via, depois de chegar aqui, nem todos eram felizes. Martelava-a a dúvida se ela viria a ser.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;"><span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 1;"> </span><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Se ao menos ele se calasse</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;"></span><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Retirou as gorduras ao frango. Também ela precisa de perder gordura. Não sabe quando se deu a metamorfose, mas simplesmente soube, naquele momento, que já não sabia que <b style="mso-bidi-font-weight: normal;"><i style="mso-bidi-font-style: normal;">Eu</i></b> era. Sentia-se um galinha gorda, cheia de leite e ovos para fecundar.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O bebé a querer mamar. O marido a querer tomar-lhe o corpo que ela escondia envergonhada debaixo das roupas de sopeira. Os olhos sempre carregados e febris de lágrimas. O nó da garganta doía-lhe de tristeza reprimida. Não os podia soltar. Nem as lágrimas, nem a tristeza. Agora era crescida, diziam-lhe. E a primeira das artes que aprendia agora crescida era esconder tudo de si. Que irónica era a vida! Concluiu que era feita de pequenas mortes. Quando se chega a crescida, morre-se<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>e nasce-se no mesmo instante, novamente crescida e totalmente desconhecida de si. O que sentia, o que a fazia rir, o que a fazia chorar, o que gostava ou não, deixou de existir porque não pertencem à nova identidade de crescida, casada e mãe. Passou a existir órfã de si, com a dura tarefa de tudo reaprender segundo novas verdades. Os génios, pensou, conseguem ainda continuar gostar deles mesmos depois de tudo.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Olhou finalmente o frango totalmente desmembrado com indiferença. Deitou-o no lixo. Não gostava de frango.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">De seguida lavou as mãos. As facas. As bancadas. E deixou a cozinha como a encontrara. Imaculada.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;"><span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 2;"> </span><span style="mso-tab-count: 1;"> </span>Quer colo</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoBodyText" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT"><span style="font-family: Verdana;">Com lucidez estremeceu. Ela já não sabia a que cheirava e sabia um colo. Era sempre ela a dar colo. Nunca o contrário. Era ela que aninhava e apaziguava o bebé. Era ela que afagava e acolhia o marido. A injustiça de ser crescida invadia-a novamente ao perceber que só ela cresceu. Uma promoção pessoal que a premiou com uma enorme solidão. A partir de agora, nunca mais ninguém olharia por ela. A partir de agora, era ela a olhar pelos outros. Ao marido parecia ser-lhe permitido continuar criança. Como se a imaturidade lhe desse um toque de encanto e lhe vincasse a personalidade. Apesar de tudo, conseguia olhá-lo com ternura. Interrogava-se se seria as suas novas qualidades de maturidade a moldarem-na. A apagarem-lhe a noção de injustiça. A redefinirem-lhe os sentimentos. A reprogramarem-lhe a cabeça e coração, dando-lhe como exemplo a seguir os seus pais, os pais dele, o desencanto e a resignação disfarçados por vidas plásticas e formais. </span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Com a faca do “chef” e o cutelo, subiu a escada e entrou no quarto onde o bebé dormia. Observou-o atentamente. Os bracinhos para cima. As pernas escachadas. A mesma fragilidade do frango. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Guardou as facas na mala e pegou no bebé.</span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Acariciou-lhe as pernas. Os braços. Sentiu a sua carne tenra e observou o movimento das suas articulações. Agora já sabia como seria fácil desmembrá-lo. Com a mesma facilidade com que ele desmembrou o seu Eu sem que ela desse por isso. </span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Tapou-o e saiu.</span></div><div class="MsoBodyText" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT"><span style="font-family: Verdana;">Era dia de Terapia analítico-comportamental. </span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: Verdana;">Era dia de aceitação das fontes de sofrimento e compromisso com a mudança.</span></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-194288378424868136.post-42438685570550719322010-11-19T15:37:00.000+00:002010-11-19T15:37:52.680+00:00A cave<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span lang="PT" style="font-family: 'Arial Unicode MS'; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">A minha cobardia perante a morte envergonha-me. A minha recusa em encará-la de frente torna-me menor. Por isso tranquei-a na cave</span><span lang="PT"> </span><span lang="PT" style="font-family: 'Arial Unicode MS'; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">e fujo dela desde então. Tento esquece-la, finjo que ela não existe, para poder aceitar os meus dias. Vivê-los depois dela tornou-se absurdo. Aceitar continuar a viver quando nos lançam a morte ao caminho, só pelo prazer de ver quem sobrevive a quem, é aceitar viver corrompido por um jogo que antes de começar sabemos quem são os derrotados: os vivos e os mortos. Mas dos mortos, dizem que vão para melhor.</span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: 'Arial Unicode MS'; mso-bidi-font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A minha cave fica no Alto de S. João. Tem um número na porta e uma chave que, no entanto, não uso para a abrir.</span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: 'Arial Unicode MS'; mso-bidi-font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Foi aqui que encerrei uma dor que não conhecia e no alto da minha pujante vida, me julguei até imune. Não estava preparada para a conhecer tão cedo. Sei agora que nem mais tarde, porque hoje continuo a não estar preparada para ela. Na necessidade de sobreviver à falta de coragem de pôr termo a uma vida que senti não merecer, ignoro que ela exista e é por isso que não tenho certeza nos meus dias. Porque é a morte que dá certeza à vida e eu escolhi ignorá-la. Não sei que mulher sou, que mãe, que guardiã do seu maior bem, que permitiu que ela, a morte, sorrateira e silenciosamente, lhe levasse uma filha e com ela o meu chão. </span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: 'Arial Unicode MS'; mso-bidi-font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">E como se caminha sem chão? </span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: 'Arial Unicode MS'; mso-bidi-font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">E sem dias? </span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: 'Arial Unicode MS'; mso-bidi-font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">E embora não os querendo, os meus dias teimavam em ser dias e, sem no entanto terem sido, só muitos anos depois percebi o que foram. Simplesmente dias. Cumprindo o tempo. O tempo que curaria a minha dor. <i>“com o tempo passa”, </i>diziam. Mas o tempo doía-me. Insultava-me com a passagem dos seus dias, das suas horas, que me recordavam as horas daquele dia. Até que depois, muito tempo depois, veio o dia que o tempo curou. Depois desse dia, os dias são de dor que ficou sem doer. </span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: 'Arial Unicode MS'; mso-bidi-font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O que o tempo ainda não curou é o medo que tenho da morte. Eu e ela vivemos em luta constante na recusa da vida que eu insisto em guardar dentro de mim. </span></span></div><div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: justify;"><span lang="PT" style="font-family: 'Arial Unicode MS'; mso-bidi-font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">É por isso que não a visito com medo que ela aprenda a subir a escadas da cave para me visitar de novo.</span></span></div><span lang="PT" style="font-family: 'Times New Roman'; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: 'Times New Roman'; mso-fareast-language: EN-US;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">É por isso que aquela porta continua a só ter um número por nome. Dar o nome da minha filha àquela porta, era dar à morte a vida que ainda hoje lhe continuo a negar.</span></span><br />
<br />
<span lang="PT" style="font-family: 'Times New Roman'; mso-ansi-language: PT; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: 'Times New Roman'; mso-fareast-language: EN-US;"><span style="font-family: Verdana;">(in "A Minha vida num Livro" de Pedro Sena-Lino)</span></span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-194288378424868136.post-91184755517053605992010-11-17T15:42:00.000+00:002010-11-17T15:42:28.070+00:00O Poço<div class="MsoBodyText" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span lang="PT"><span style="font-family: Arial Unicode MS;">Não gostava de tirar água do poço. Nunca vinha limpa.</span></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span lang="PT"><span style="font-family: Arial Unicode MS;">As impurezas acumuladas no fundo turvavam-me o esforço de acreditar na pureza do beijo. Como a água do poço, o beijo era frio. </span></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span lang="PT"><span style="font-family: Arial Unicode MS;">Também ele turvo, sem que no entanto lhe conhecesse a razão da sua incerteza, escorria sem que tivesse tempo de o sentir.</span></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span lang="PT"><span style="font-family: Arial Unicode MS;">Seria limpo, puro e verdadeiro se não viesse do fundo?</span></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span lang="PT"><span style="font-family: Arial Unicode MS;">Não sei. Mas sei que nunca vou saber a que sabe a água de um beijo que vem de cima, da água mais limpa, mas cristalina. Daquela água que se reflecte em nós e nos inunda de luz e certeza. </span></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span lang="PT"><span style="font-family: Arial Unicode MS;">Não gosto de tirar água do poço. </span></span></div>
<div class="MsoBodyText" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span lang="PT"><span style="font-family: Arial Unicode MS;">A água do beijo vem sempre do fundo. E no fundo do poço o beijo é seco.</span></span><br />
<span style="font-family: Arial Unicode MS;">(Dez/2009)</span></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-194288378424868136.post-77467930653054178082010-11-17T11:15:00.002+00:002010-11-17T11:15:09.128+00:0023:10hAproximava-se a hora. <br />
António regressava do parque de estacionamento. Eram oito da noite. Para trás deixava a cabina onde trabalhava. De passo largo, satisfeito, caminhava até casa. Quem olhasse para ele não adivinharia um homem sem sonhos. Mesmo depois de viver em paz. <br />
<br />
Ainda era difícil chegar a casa. Abrir a porta e, a esperá-lo, a angústia do passado na expressão desolhada e o corpo rígido da mãe. “Estou cansada. Não durmo bem”, mascarava. Serenava apenas quando olhava o jantar quente em cima da mesa. Eram só os dois. <br />
<br />
António vivia de rotinas. A repetição da vida numa segura monotonia que afiançadamente não lhe trazia surpresas nem traições. António era um homem cerrado. Só usava camisolas pretas. As únicas que o ocultavam até de si e, oculto, vivia o escuro da noite que à janela do seu quarto o distraía sem culpas. Desde os tempos de escola que lhe reclamavam a atenção. Foi naquela altura que a cabeça aprendeu a fugir. Assim, a vida não parecia tão difícil. <br />
<br />
Agora, gostava que fosse possível aprender tudo de novo. Sonhar. Confiar. Mas os ânimos mais atrevidos eram condenados pela lembrança que o combóio das 23.10h trazia. A partida do pai. A nova vida. O alívio. A paz. Desejos tão impossíveis e subitamente todos realizados. Depois destes, não aspirava a mais nenhum.<br />
<br />
Ao longe, o seu conhecido.<br />
Sorria ao som do seu apito.<br />
<br />
Da felicidade apenas guardava pequenos ecos dispersos na memória. Lembrava-se de ter sido uma criança feliz. Passeios de mãos dadas. Ele pequeno a olhar o pai enorme como os sonhos e o mundo de que lhe falava. Um conquistador que queria seguir. Recordava as tardes na casa grande com muitos quartos e cheia de senhoras só de robe. Apesar de estranhar vê-las com roupa de noite em pleno dia, tudo parecia normal quando o apaparicavam e contavam histórias de encantar. Até ao dia em que percebeu que aquelas histórias não encantavam a mãe. E aos poucos deixaram de ser felizes. <br />
Com a barba veio a revelação. <br />
A crueldade dos colegas de escola acabou-lhe com o mito. Às gargalhadas. <br />
<br />
Não sabia o que fazer com o que tinha descoberto. Como é que se vive depois de saber que o pai nunca tinha sido aquele pai? Como é que se pode aceitar um novo pai? Não. Não havia novo nem velho pai. Havia só aquele desconhecido que ele odiava duplamente. Por tudo o que era e por tudo o que ele nunca tinha sido. <br />
<br />
E ele, quem era? Ser filho de um desconhecido fazia dele um órfão. Era isso que ele era. A sua identidade extinguiu-se naquela verdade. Uma verdade que não consentia e que tinha que aceitar. Só tinha aquela vida. “Não vales nada. És igual a ela”, humilhava. À mãe, a repulsa apenas lhe valia ameaças que lhe abriam a porta da rua. Mas o rapaz fica, rematava. Sem ti, talvez se faça homem. Foi então que se vestiu de pesar. Pelo medo que o escravizava mudo e quedo. <br />
Até ao dia que se achou. E nesse dia foi capaz de acabar com o asco que o corrompia. Uma noite foi ao seu encontro. Tinha os punhos cerrados, tão cerrados que lhe doíam. Receava perder toda a coragem que reunira. A veste mais escura que a noite, apanhou o pai de surpresa. Olhou-o nos olhos e, sem remorsos, desembuchou anos de nojo. Desaparece, ou mato-te!, foram as últimas palavras que lhe disse.<br />
<br />
Nessa noite, voltou à janela do quarto de peito aliviado. O pai tinha razão. Ele e a mãe eram iguais. Aquela noite provou-lhe que os mortais também ressuscitam. Plenos. O desconhecido não voltou para casa e as noites ganharam cheiro a lavado. Foi nesta altura que deixou de desejar. Tudo o que queria, alcançara. À mãe agradecia nunca ter desistido. Por isso, também ele não fraquejara. <br />
<br />
Ao fundo, o apito do comboio das 23.10h. A constância a cumprir-se num cumprimento de amigos.<br />
<br />
Conciliado, agradecia-lhe a ajuda. A sua luz, como que uma anunciação divina, mostrou-lhe o fazer. “Combóio faz mais uma vítima”, diziam os jornais do dia seguinte. Os braços endureciam. Ainda recordavam a força com que o empurrara. Impávido, ainda via o seu desaparecer trucidado. Impiedoso com as horas.Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-194288378424868136.post-86795314101621668222010-11-17T11:13:00.001+00:002010-11-17T16:29:56.813+00:00Fronteiras<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Uma carrinha de caixa aberta aproximava-se.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">“Vem enganado como todos os outros.” pensou a mulher.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Mas com este foi um pouco diferente. </span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Com o cotovelo pousado na janela aberta, o homem, trintão, bigode aparado e ar rufia mas simpático, fitava-a. Depois, sorridente, cumprimentou-a: </span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">- Ei giraça...</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Agradada, respondeu:</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">- Bom dia.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Mas o sorriso dela desvaneceu-se ao ver, naquele instante, uma arma apontada a si.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ele, sem deixar de sorrir, apenas disse:</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">- Passa para cá a massa.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Juntou o dinheiro pensativa. “Nunca ninguém me chamou giraça”.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">- Só isto? Perguntou ele, descontente com a quantia recebida.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ela encolheu os ombros.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">- Mas posso levá-lo para longe daqui.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Foi a primeira e a última recordação. A seguir, fechou os olhos. </span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br />
</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Uma portagem estabelece sempre uma fronteira. A maior parte dos que a atravessam passam por ela quase sem dar conta, viajantes puros. Alguns, poucos, detêm-se. Talvez estejam perdidos.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br />
</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O rádio tocava baixo. Sentada, quieta, com o olhar perdido na estrada, Maria esperava. Apesar de contrariada, tinha que haver sempre alguém a tomar conta. A motoreta que se aproximava anunciava que chegara o momento em que alguém tinha que a render. Só os grilos cantavam na noite silenciosa. Maria levantou a bicicleta meia escondida pela vegetação e afastou-se pedalando lentamente. Contrariada, deu uma última mirada ao colega que, de costas para ela, se instalava no seu posto.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br />
</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">No início também não tinha sido fácil para ela. Custava-lhe que quase ninguém passasse por ali. Agora já não se importava. Até preferia assim. Adaptou o seu mundo aos campos que se estendiam em volta da sua cabina, numa calma só perturbada pelo voo dos pássaros e aos vários livros e revistas que lia. No que lia, o mundo dos outros parecia maravilhoso. Muito diferente do que chegava até ela. Mas com o tempo, convenceu-se que o melhor era deixar de perseguir o mundo dos outros e aceitar ser simplesmente feliz. Dos livros guardou só um. Na verdade pouco ou nada precisava dos outros. Abandonou a inquietação que estes lhe traziam e concentrou-se no seu posto. Nunca se desleixava. Sabia perfeitamente quando um carro se aproximava. Estava sempre pronta para os receber. A maior parte dos que apareciam viam-se que estavam perdidos e se calhavam falar com ela, não resistia. Começou a convidá-los para longe dali. Desapareciam por entre a vegetação e os barulhos tranquilos da natureza. </span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Depois, eles partiam e ela ficava a vê-los afastarem-se. Olhando a estrada como se esperasse que esta lhe trouxesse alguma coisa especial. Sabia que mais qualquer coisa lhe estava ainda prometida.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br />
</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Com este último foi diferente. Nunca lhe tinham chamado giraça.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Parecia vir enganado como os outros. Depois, apontou-lhe uma arma e nunca mais foram os mesmos. Ela começou por levá-lo para longe dali. Mas ele não ficou. Contudo, foi o único que voltou. Trazia quase sempre presentes. Ela sabia que eram roubados, mas acabava rendida. Com ele, não precisava de mais ninguém. Ele velava o seu mundo enquanto ela dormia e assim era finalmente senhora de tudo. Maria deixou de levar os viajantes para longe dali e Mário não voltou a roubar mais nada depois de lhe ter roubado o coração.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br />
</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Um dia vieram buscá-lo. Ele não estava, levaram-na a ela. Que também tinha culpa, calara a verdade, acusaram. Eu não sabia... ele disse que queria assentar...” balbuciou. Não lhe valeu de nada. Foi condenada e encarcerada. Aos poucos foi acabando. Descobriu uma verdade que agravou aquela que tinha aceitado. Por uns tempos vivera a ilusão da completude mas Mário era uma metade de um todo que não resistiu ao mundo dos outros. A um mundo que não deixou de chamar por ele. E Maria não tinha sido cruel o suficiente para o impedir de partir. </span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A ela não lhe servia uma felicidadezinha ajustada. Sabia que estava para sempre condenada a ser metade de um todo impossível. Por isso, não se conformou. E acabou com tudo.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br />
</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">“Deixei que quebrasse as fronteiras do meu mundo. Levaste-me para longe dele. Deixei soprar a paixão. Os pregos de véu que protegia a minha intimidade caíram como figos verdes da figueira sacudida por um vento forte. E fiquei exposta. A um mundo novo. Nosso, acreditei. Percebo agora que não. Ao teu, não quero estar presa. Perdi o caminho de volta. Este é o único que me resta.”</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br />
</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A cabina onde vivera era diferente daquela onde morrera. A primeira tinha um rádio, a segunda uma cama e crucifixo.</span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Três mulheres fardadas olhavam o corpo. Tão surpresas quanto a morte nos pode ser. Com os pulsos toscamente cortados, Maria repousava sobre o crucifixo. A quem tinha pedido todas as noites que a levasse para longe dali. As preces foram finalmente ouvidas e atravessou a fronteira que a delimitava como um viajante puro. Vulnerável. Perdida. </span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Em cima da cama, arrumada, deixou uma carta. Para Mário, dizia. </span><br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">No rosto, a expressão serena de quem alcança a libertação.</span><br />
<br />
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">(Abril/2009)</span>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-194288378424868136.post-66467135020525738992010-11-17T11:08:00.002+00:002010-11-17T11:10:54.009+00:00DegrausOs nervos varrem-me a memória, tiram-me as palavras da boca, o discurso ensaiado esvai-se em mágoas e culpas, subo as escadas e em cada degrau, que subo lento, tento memorizar as frases que preparei<br />
<br />
não me fizeste feliz<br />
detesto a maneira como comes<br />
estou há demasiados anos presa a ti como um cão, obediente e fiel<br />
quero ser livre, quero outros homens, quero dormir até tarde e deixar de vestir <br />
roupas como se tivesse 50 anos<br />
<br />
mais um degrau e abençoo a minha vida falhada, o meu ventre estragado, não me deu filhos, eu também não os queria, não quero réplicas de ti, és igual à tua mãe e eu odeio a tua mãe, falhei como cristã só tenho ódio dentro de mim, aproximo-me do patamar e da luz que diz que me esperas no quarto que cheira ao jornal que lês, nunca consegui que perdesses esse hábito<br />
<br />
sei que me esperas na mesma posição de sempre, sentado, recostado nas tuas duas almofadas, de rosto rígido e óculos na ponta do nariz, sempre demasiado composto<br />
<br />
deito-me suavemente como suavemente se deitam os cães aos pés dos donos, a cama quente chama-me pela infância e pelo conforto de ter alguém que olhe por nós, arrumas o jornal e antes de apagar a luz dás-me um beijo, um beijo igual a todas as noites que me recompensa como uma festa no lombo<br />
<br />
abro a boca para finalmente libertar a angústia que me acorrenta. olhas-me sério enquanto te digo firme e convicta: não sei viver sem ti.Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-194288378424868136.post-36767740848363477622010-11-17T11:05:00.001+00:002010-11-17T11:10:31.460+00:00O Coração da CasaA vida daquela casa nascia na cozinha.<br />
Era ali que a encontrava todas as manhãs. A vida e a Mami.<br />
Ao acordar, percorria, quase sonâmbula, o silêncio da casa conduzida apenas pelo bater do seu coração que ecoava só para me guiar. Pulsava a cozinha e pulsava ela, cheia de vida que despertava a vida ainda adormecida em mim.<br />
Sem palavras que desflorassem o silêncio, a sua figura esbelta, esguia, de cabelo penteado num carrapito elegante, recebia-me apenas com olhos e braços que me levavam para dentro dela. E era de dentro dela que encontrava a vida para aquele dia. Uma vida que se renovava todos os dias, nas suas manhãs, fossem de chuva ou sol. Pouco importava como acordava o dia pois não eram eles que faziam a vida. Era ela. Na segurança do seu abraço, no aconchego do seu colo, nos seus rituais que também já eram os meus.<br />
Sentada no banco que ficava entre o fogão e a bancada da cozinha, aguardava o pequeno almoço ainda mal articulando o pensamento e as palavras, sofrendo das angústias com que acordava todos os dias. Não lhes sabia a origem mas eram tão reais em mim como os meus braços ou as minhas pernas. As minhas angústias levantavam-se e deitavam-se comigo. Mas havia um momento, um único momento no dia, que nada, nem angústias, existiam. E o momento era aquele.<br />
Dos rituais, o ritual supremo: no meio dos barulhos da cozinha, bicos de fogão desafinados, panelas de pressão a chiar, esquentador a ronronar, todos com absoluta indiferença pela nossa presença, a vida suspendia-se por instantes. Naquele instante, éramos só nós as duas. Eu, levantava-me para ela se sentar no banco entre o fogão e a bancada da cozinha. Um cantinho que não era nem grande nem pequeno, apenas do nosso tamanho, o suficiente para ficarmos sós e em silêncio no meio do burburinho matinal que acordava a casa. Mas ao levantar-me não lhe dava o lugar. Era ela que me dava lugar. O lugar, o único, em si. Suavemente, puxava-me para o seu colo e eu, entre o calor do seu corpo e o frio da pedra da bancada de mármore, comia as melhores torradas da minha vida. Ela, naquele que era o seu maior prazer de todos dos dias, via-me comer. Olhava-me em silêncio, apenas sorrindo sempre que lhe procurava os olhos e eu, olhada em silêncio, agradecia em cada mordida, aquele olhar que dava vida ao meu coração e me apaziguava as angústias, que apesar de saber que no dia seguinte estariam de volta, naquele instante tudo era perfeito, bom e belo.<br />
Com a adolescência, saí daquela casa. Depois de mim houve outras crianças naquela casa, no lugar que foi meu. Mas nunca o tiveram verdadeiramente. Guardo a mágoa de, ingratamente, ter passado muito tempo sem a visitar. O remorso crescia quando, em cada visita, no lugar da esperada e justa reclamação, estava o sorriso, os olhos e os braços de sempre. Em cada despedida, deixava-me no ouvido “és o meu amor”.<br />
Mas era precisamente desse amor que fugia.<br />
Depois do dela não tive outro que me dissesse que eu era capaz. Capaz de tudo, dizia-me ela. E como iria eu viver sem aquele amor? Como ia eu sobreviver às minhas angústias, que traiçoeiramente cresciam quando viram que perdia protecção? E como dizer-lhe que não a visitava para aprender a viver sem o seu amor por não ter quem lhe desse seguimento, colo e torradas? Guardo e guardarei a mágoa de não a ter visitado todos os dias da sua vida, depois de ela ter deixado de fazer parte da minha. De não ter ouvido todos os dias “és o meu amor” e de ter faltado sempre à promessa de voltar na semana seguinte. A última vez que voltei foi para a ver morta. Branca de luz, esbelta, esguia e de cabelo elegantemente desmanchado. Chorei durante muito tempo uma culpa sem fim. Uma culpa que passou também ela a fazer parte das minhas angústias. Até à noite em que me apareceu em sonho. Só o rosto de traços finos, levemente rosado e o cabelo penteado num carrapito elegante. Desde então, as suas aparições, raras e fugazes, parecem escolher criteriosamente o momento de me visitar. Sem palavras e apenas por breves instantes. O suficiente para me deixar o sorriso de sempre que me traz à vida a vida que às vezes foge de dentro de mim.<br />
Hoje, a minha cozinha é o coração da minha casa. É aqui que tudo acontece. Desde as refeições em família, as ajudas aos trabalhos de casa, palestras educativas ou simples brincadeiras e construções de Lego. A minha cozinha moderna não tem chaminé. Mas tem um cantinho com um banco onde os meus filhos me encontram quando querem colo.<br />
(Set/2009)Unknownnoreply@blogger.com0