segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A Montanha

Subir uma montanha é uma prova de esforço. Um sacrifício.
Silvestre subia a montanha todos os dias. Sempre que se deitava ao caminho, havia nele um entusiasmo inicial, quase infantil e ingénuo, que o fazia esquecer a dificuldade que era subir a montanha. Como a dor nas pernas. Já a montanha ia a meio quando por elas dava.
As pernas pesando, os tornozelos estalando e as plantas dos pés sentindo as pedras a enterrarem-se-lhe na carne como o sacrifício se enterra na fé. O coração batia cada vez mais devagar. A parar lentamente por dentro. O sangue sentia-o já pastoso. Como que a vida a arrastar-se numa última agonia. Só dava pela dificuldade quando o corpo se preparava para morrer.

Mas da fé, assim como da montanha, Silvestre não desistia.
Desistir da montanha era desistir da vida. E Silvestre só sabia ter aquela vida de moço de estrebaria que ficava para além da montanha.
À sua semelhança, o chão da vida não era fácil, liso, sem pedras no caminho. Para lá dela, como ela, o seu dia era duro e espinhoso.
Era aquela montanha que o dava à luz todos os dias. Com o ar frio crescia febril o desejo de vencer. Tão puro de vontade que lhe custava a entrar no peito. Igualzinho ao dia em que nasceu da carne. A mesma dor quando o ar lhe entrou no peito e o fez gritar a plenos pulmões. Já naquela altura a todos surpreendeu a força da sua afirmação. Mediram o seu calibre pelo alcance do seu grito. Ele só nascera com meio metro. Mas meio metro de gente é muito promissor, augurou o pai.

A montanha era uma prova de esforço que ele vencia todos os dias. Com o suor de quem não desiste. Com o fôlego de quem resiste. Com a determinação de quem subsiste. A dificuldade ultrapassava com a mesma força que precisou para nascer. Com a força com que empurrou a barriga de sua mãe, empurrava o chão da vida. Os pés vincados nas costelas, a cabeça a furar um caminho igualmente árduo e doloroso, o coração a explodir no peito e o vento da fé a leva-lo para cima.
Era no cume que o sacrifício da montanha se apaziguava num suspiro que tudo levava de dentro de si.
Só o frio da montanha permanecia. Todos os dias. Para o acompanhar.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Desmembramentos

Tirou o cutelo.
As bancadas de pedra estavam escrupulosamente limpas. Ao contrário de qualquer cozinha onde se acumulam torradeiras, correio e espremedores de fruta nas bancadas, estas eram só limpas e frias.
Maria estava de olhos fixos no frango que acabara de colocar em cima da tábua. Abriu a gaveta dos talheres onde guardava o conjunto de facas de cozinha. Estavam arrumadas por tamanhos. Um tabuleiro de instrumentos cirúrgicos não estaria melhor arrumado.
Olhou novamente o frango. As pernas escachadas e as asas abertas faziam-no parecer o bebé.


                                                            Se ao menos ele se calasse


Tirou a faca de "chef".
Uma lâmina que serve para quase tudo, longa de 30 cm e larga, ponta ligeiramente curva.
Com a mão esquerda agarrou na perna esquerda do frango. Depois, encostou a faca junto à coxa do frango e pressionou suavemente sentindo-a enterrar-se na carne tenra, lenta mas firme, enquanto a coxa se separava da carcaça. Numa só peça. Coxa e sobrecoxa. Depois, separou-as cortando-as pela articulação. Cortar pela articulação era fácil. Não tinha que lutar contra os ossos que requerem força. E Maria não queria lutar mais. Lutava todos os dias para se levantar. Lutava contra as dores dos seios quando dava de mamar. Lutava contra o sono. Contra o cansaço. Contra o corpo que teimava em esquece-la. Como todos. Porque as articulações por onde todos se ligavam, começavam a inchar de silêncio.
Para não lutar com os ossos, cortava pelas articulações. Para as encontrar, bastava-lhe mover a peça de carne e cortar na direcção indicada pelo movimento. Fácil. Fez o mesmo com a coxa direita. E com as asas que pareciam coxas mais pequenas.
Seguia-se o peito.
Pousou a faca. Agora o frango parecia um bebé sem pernas nem braços. Limpou o suor da testa e puxou o cabelo ainda despenteado para trás. Respirou fundo.

                                                       Se ao menos pudesse dormir

Pegou no cutelo.
Com um gesto rápido e firme enterrou-o com raiva ao centro da carcaça separando o peito do frango em dois.                        
O frango cortado ao meio, agora ensanguentado, evidenciava as costelas e miudezas. E fragilidade. Quão frágil era agora o frango, esquartejado. Mas o frango despedaçado não se calava. Porque a fragilidade faz barulho. Grita queixas e pedidos de ajuda inteligíveis.
 

                                      Se ao menos percebesse o que ele quer


Mas não era ela que não percebia. Eram os outros que deixaram de a perceber. Porque ela já não era ela. Já não era um Eu. Despertou numa vida em que os dias eram feitos de enganos. Foi assim que percebeu que o seu Eu já não era o mesmo. Viu-se sozinha numa vida na qual não se reconhecia. Era só ela. Sem o seu Eu. Numa nova vida. Outro Eu, desconhecido dela, ocupou o lugar do seu Eu perdido, porque este já não servia à vida que levava. Agora não era ela que vivia a vida. Era a vida que a vivia a ela. Uma explosiva imposição da qual o futuro não a deixava fugir. Todos os dias. Perguntava-se se haveriam dias diferente. A sua tristeza já não lhe permitia sequer acreditar que haveriam outros dias.
À medida que avançava pela casa, uma voz ralhava-lhe ameaçando-a de castigos. E ela, dormente, cumpria o seu destino. Prepararam-na para ser uma pessoa que ela não conhecia. “Senhora de....”. A passagem da sua identidade para o nome de outrem, esvaziava-a. Sentia saudades de si. Daquela que fora até casar. Como se não bastasse, acompanhada pela obrigação de cumprir certas instruções “a partir de agora...” que definem um modo de agir adulto e responsável. Uma forma de vida conjugada no imperativo “tens que...”, cheia de avisos “não te esqueças de...”, que a alertavam para uma existência cheia de perigos e armadilhas. Apesar da visão do que a esperava, não tinha como fugir. E agora tinha o bebé. É a vida, diziam-lhe. Ainda se sentia pior. Pelo que via, depois de chegar aqui, nem todos eram felizes. Martelava-a a dúvida se ela viria a ser.


                                                           Se ao menos ele se calasse

Retirou as gorduras ao frango. Também ela precisa de perder gordura. Não sabe quando se deu a metamorfose, mas simplesmente soube, naquele momento, que já não sabia que Eu era. Sentia-se um galinha gorda, cheia de leite e ovos para fecundar.  O bebé a querer mamar. O marido a querer tomar-lhe o corpo que ela escondia envergonhada debaixo das roupas de sopeira. Os olhos sempre carregados e febris de lágrimas. O nó da garganta doía-lhe de tristeza reprimida. Não os podia soltar. Nem as lágrimas, nem a tristeza. Agora era crescida, diziam-lhe. E a primeira das artes que aprendia agora crescida era esconder tudo de si. Que irónica era a vida! Concluiu que era feita de pequenas mortes. Quando se chega a crescida, morre-se  e nasce-se no mesmo instante, novamente crescida e totalmente desconhecida de si. O que sentia, o que a fazia rir, o que a fazia chorar, o que gostava ou não, deixou de existir porque não pertencem à nova identidade de crescida, casada e mãe. Passou a existir órfã de si, com a dura tarefa de tudo reaprender segundo novas verdades. Os génios, pensou, conseguem ainda continuar gostar deles mesmos depois de tudo.
Olhou finalmente o frango totalmente desmembrado com indiferença. Deitou-o no lixo. Não gostava de frango.
De seguida lavou as mãos. As facas. As bancadas. E deixou a cozinha como a encontrara. Imaculada.


                                                                              Quer colo


Com lucidez estremeceu. Ela já não sabia a que cheirava e sabia um colo. Era sempre ela a dar colo. Nunca o contrário. Era ela que aninhava e apaziguava o bebé. Era ela que afagava e acolhia o marido. A injustiça de ser crescida invadia-a novamente ao perceber que só ela cresceu. Uma promoção pessoal que a premiou com uma enorme solidão. A partir de agora, nunca mais ninguém olharia por ela. A partir de agora, era ela a olhar pelos outros. Ao marido parecia ser-lhe permitido continuar criança. Como se a imaturidade lhe desse um toque de encanto e lhe vincasse a personalidade. Apesar de tudo, conseguia olhá-lo com ternura. Interrogava-se se seria as suas novas qualidades de maturidade a moldarem-na. A apagarem-lhe a noção de injustiça. A redefinirem-lhe os sentimentos. A reprogramarem-lhe a cabeça e coração, dando-lhe como exemplo a seguir os seus pais, os pais dele, o desencanto e a resignação disfarçados por vidas plásticas e formais.
Com a faca do “chef” e o cutelo, subiu a escada e entrou no quarto onde o bebé dormia. Observou-o atentamente. Os bracinhos para cima. As pernas escachadas. A mesma fragilidade do frango.
Guardou as facas na mala e pegou no bebé.
Acariciou-lhe as pernas. Os braços. Sentiu a sua carne tenra e observou o movimento das suas articulações. Agora já sabia como seria fácil desmembrá-lo. Com a mesma facilidade com que ele desmembrou o seu Eu sem que ela desse por isso.
Tapou-o e saiu.
Era dia de Terapia analítico-comportamental.
Era dia de aceitação das fontes de sofrimento e compromisso com a mudança.